Carlos Américo Freitas Pinho
4 de setembro de 2024
Trabalhista
A discussão sobre a denominada “pejotização” tem ganhado destaque crescente nesta década, e ainda há ainda muita confusão quanto às diferenças fundamentais entre os regimes de pessoa jurídica (PJ) e o da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Cada forma de contratação tem características específicas, sobre as quais este artigo visa a jogar luz, dando clareza às suas definições e a quando cada uma delas é aplicável.
Camila Domingues/ Palácio Piratini
Não raro, o Ministério Público do Trabalho aciona o Poder Judiciário, por meio de ações civis públicas, visando a desconstituir a contratação de PJ, situação cada vez mais comum no mercado brasileiro. De outro lado, estão empresas de aplicativos, que utilizam suas plataformas para se inserir no mercado e, em consequência, abrem meios de rendimento para quem se encontra desempregado ou deseja auferir algum dinheiro extra.
Em suas ações, os promotores do MPT fundamentam que caberia reconhecimento do vínculo empregatício por estarem presentes os requisitos previstos no artigo 3º da CLT: habitualidade, pessoalidade, subordinação e onerosidade. Por sua vez, os réus alegam justamente a ausência do quesito subordinação – elemento essencial no contrato de trabalho celetista. É uma discussão que ainda deve gerar muita discussão nos tribunais.
Fundamentação via discussão jurídica
Em 2020, por exemplo, a empresa Loggi Tecnologia Ltda. chegou a ser condenada em primeira instância pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP) a assinar as carteiras de trabalho de todos os motofretistas cadastrados em sua plataforma digital. No entanto, obteve, por liminar, efeito suspensivo da decisão até seu trânsito em julgado.
Melhor sorte teve a iFood, em ação civil pública cível que tramita na 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, não se limitando a motofretistas, mas se estendendo a todas as modalidades de entregadores. Nesse caso, o juízo de primeiro grau entendeu por não reconhecer o vínculo empregatício entre os entregadores e a requerida.
Na ocasião desta última sentença, foi possível extrair elementos que tornam esse tipo de trabalhador senhor de suas responsabilidades, não havendo a subordinação.
“O cidadão ao desempenhar uma atividade remunerada sem ser empregado, diante do modelo legal vigente, tem duas opções claras: a) Inscrever-se como MEI, contribuindo com uma pequena parcela e recebendo o benefício estabelecido para aquela contribuição; b) Inscrever-se como trabalhador autônomo, recolhendo a alíquota incidente sobre os seus ganhos e recebendo o benefício de acordo com o valor sobre o qual contribuiu.”
Mais adiante:
“Outro aspecto importante da relação em análise é que o motofretista se diferencia por possuir a ferramenta de trabalho, ou seja, possui o meio de produção. Possuir o meio de produção afasta a figura do empregado que presta seus serviços utilizando-se dos meios de produção do empregador e o aproxima mais da figura de autônomo. Se possuir mais de um veículo, ou explorar veículo colocando outra pessoa para trabalhar, estará mais próximo da figura de empregador.”
(…)
“Portanto, o indivíduo, no caso o trabalhador, não está desprotegido. Há mecanismos de proteção que exigem, entretanto, que arque com sua parcela de contribuição social para fazer jus aos benefícios e serviços prestados pelo Estado.”
Não prosperaram os argumentos da Procuradoria, de que os trabalhadores seriam verdadeiras marionetes do aplicativo e que isso provocaria um dumping social.
Spacca
Como dito acima, um dos objetivos da reforma trabalhista foi alçar o trabalhador à condição de responsável por suas decisões. Contribuir com a previdência social ou deixar de contribuir, por exemplo, é uma decisão que cabe única e exclusivamente a quem emprega sua força de trabalho nos moldes do caso em tela.
Esses trabalhadores, como se sabe, não ficam à disposição do aplicativo enquanto não recebem chamadas. Têm a possibilidade de desligar o celular e de trabalharem apenas quando quiserem, não ficando sob a fiscalização do titular da plataforma digital, o que descaracteriza a subordinação. Portanto, não há qualquer violação ao artigo 442-B da CLT capaz de transformar essa relação num contrato de trabalho na forma de seu artigo 3º.
Cabe ainda assinalar que a liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas é o princípio norteador trazido pela Lei 13.874/2019. A atuação de profissionais por livre iniciativa, seja de forma individual ou na constituição de pessoas jurídicas como microempreendedor individual (MEI), em nenhum momento fere a dignidade da pessoa humana, colocando-a em inferioridade ante outros profissionais.
Em sequência a tal esclarecimento, vamos, então, ressaltar e reiterar algumas das principais características que distinguem serviços os quais podem ser prestados como pessoa jurídica daqueles que exigem a contratação pessoal do trabalhador via CLT:
Pessoa jurídica
Sob este regime, o indivíduo atua como prestador de serviços autônomo, celebrando um contrato de prestação de serviços entre sua empresa e a empresa contratante. Tal contrato deve especificar, de maneira detalhada, o escopo do trabalho, as ferramentas necessárias para a execução das tarefas, a responsabilidade de cada parte, os prazos e as condições de entrega dos serviços, o tipo de atendimento prestado e a forma de pagamento, dentre outros aspectos relevantes.
Algumas das principais características desse regime consistem em:
– Ausência de subordinação: como empresa, o prestador tem um contratante, na figura de outra empresa, mas não tem um chefe ou patrão.
– Flexibilidade quanto aos horários de trabalho: não há jornada padrão e, dependendo da natureza do serviço, nem mesmo um tempo mínimo a ser cumprido em sua prestação, mas apenas o prazo para a sua entrega.
– Pagamento efetuado mediante a emissão de nota fiscal pelo prestador de serviços, sem descontos de impostos retidos na fonte.
O profissional pode, ainda, atender a múltiplos clientes simultaneamente, desde que isto não comprometa sua produtividade e os termos acordados com cada contratante.
Consolidação das Leis do Trabalho
No regime de trabalho via CLT, trabalhadores e empregadores estão sujeitos a regulamentos que incluem:
– Dias e horários de trabalho estabelecidos pela empresa empregadora.
– Benefícios previstos em lei para o empregado, tais como assinatura da carteira de trabalho, férias remuneradas, 13º salário, seguro-desemprego, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), licença-maternidade/paternidade e direito à aposentadoria.
– Eventuais benefícios extras (não obrigatórios), como auxílio-alimentação e, em alguns casos, seguro de vida e assistência médica e odontológica.
Este regime estabelece vínculo empregatício formal entre trabalhador e empresa, caracterizado por uma série de direitos e deveres previstos na CLT.
Conclusão: relação comercial x emprego
É essencial compreender que o modelo de pessoa jurídica compreende uma relação comercial entre duas empresas, sem vínculo empregatício. Por sua vez, a contratação regida pela CLT implica em uma relação de emprego, com direitos e obrigações claramente definidos para ambas as partes.
Cabe a essas partes ponderar sobre as características de cada regime, avaliando qual atende melhor às suas necessidades e à natureza dos serviços a serem prestados.
Não se pode, porém, mascarar, sob o prisma do modelo de pessoa jurídica, uma relação com evidências de trabalho subordinado, nos moldes da CLT. O contrato de trabalho é um contrato-realidade, sendo fácil comprovar quando sua natureza é deturpada.
Tal prática coloca a empresa no alvo do Ministério Público do Trabalho, das autoridades administrativas e do Poder Judiciário, aumentando seu passivo trabalhista e fiscal e acabando com sua reputação. Ela ainda gera desconfiança contra outras empresas, as quais utilizam a contratação via pessoa jurídica de forma lícita.
Por sua vez, o trabalhador submetido a uma pejotização inadequada acaba desprotegido, sem acesso aos direitos garantidos pela CLT, como FGTS, 13º salário e férias remuneradas. Assim, é fundamental que as partes interessadas compreendam e respeitem os limites legais e éticos ao estabelecerem suas relações de trabalho.
Carlos Americo Freitas Pinho
é advogado especialista em Direito do Trabalho e consultor jurídico da Fecomércio-RJ.
Fonte: conjur